“Como farejar coisas invisíveis” ou sobre Como a Cidade Dorme...
O espetáculo do grupo, que dá forma a uma pesquisa de dez anos
sobre moradores de rua, está perfeitamente integrado a 31ª. Bienal das Artes de
SP, de 2014.
As errancias, contradições, incompatibilidades, tudo o que
gera conflito, rejeita explicações e que provoca dinâmicas coletivas está
representado em obras de artistas do mundo todo, e Diadema poderia estar lá com
esta produção sobre os homens invisíveis das metrópoles contemporâneas,
justamente por não terem teto.
Não há historicidade que os justifique: eles são da rua,
como o asfalto, o lixo, os cães, a sombra, o ar contaminado da cidade, mas sem
perder jamais a sua essência de humanidade. Apesar de se confundirem ou se
camuflarem com os dejetos da cidade, o homem não foi aniquilado ou embrutecido
de vez. Ainda partilha a sua cachaça, a sua manta suja, o sopão, o fogo e as
suas palavras para quem se aproximar.
Como o invisível se escreve na cidade? È isso que o
espetáculo nos revela. Talvez escreva para suportar-se, para existir, para não
anestesiar o tato, para nos fazer interpretar os borrões de humanidade visíveis
para quem quiser ver em meio ao fedor, à sujeira, à doença, à loucura, à
violência, ao imprevisível e a tudo que repele.
O que se esconde nos códigos de relação, que encontro existe
de fato, o que está no desordenado, no caótico, nos atravessamentos? Talvez
seja o andarilho pelas ‘mil dores da vida’, que é o mote destes narradores/trovadores
da rua, como metáfora do ser universal, contemporâneo, deslocado seja por
vontade própria ou não.
A rua não como mausoléu, mas como eternidade; não como
memória, mas como construção dentro dos cotidianos banais e prosaicos. E das
frestas da humanidade dos sobreviventes nasce a poesia; da incompreensão nasce o mágico, o fugaz que é
criado para ser esquecido e degradado, como
o próprio trabalho do ator, magnífico na mimese desta apresentação.
Desacordo ou mestiço, pulsão ou condição, como fabular a
própria historia se o lugar possível não existe? O vestígio, a ruína, o erro, o
fracasso existe por si só. Não é necessário justificá-los; tem o valor próprio
do momento presente e para quem os percebe.
Do emaranhado de fragilidades é que surge a potencia,
circular, cíclica, e libertadora por fugir do perfeito, do correto, da solução.
O fraco que conduz ao profundo, ao impasse, a não disputa, ao desvio, ao acaso.
Talvez o não-homem, pleno de defeitos, seja o verdadeiro homem, aquele que não
finge ser o que não é para buscar o amor.
Obrigado pelas sensações e pelas reflexões.
Carlos Lotto, inspirado pelo diálogo com os artistas da 31ª.
Bienal de SP – 18/9/2014